Nos seus comentários críticos[1] aos dois volumes de João Gaspar Simões intitulados Vida e Obra de Fernando Pessoa (1950), Eduardo Freitas da Costa chama a atenção para o facto de Gaspar Simões usar e abusar de uma abordagem freudiana, mesmo sabendo do que Pessoa pensava de Freud como abaixo veremos. Para Freitas da Costa, o Pessoa retratado por G. Simões é um sujeito inteiramente diferente que guarda com ele apenas alguns pontos de contacto; é alguém que «faz lembrar Fernando Pessoa» mas não o é. Mas ouçamos o que o poeta pensava sobre Sigmund Freud:
Entre os guias que o induziram no relativo labirinto para que entrou, parece-me que posso destacar o Freud, entendendo por Freud ele e os seus seguidores. Acho isto absolutamente compreensível […] Freud é em verdade um homem de génio, criador de um critério psicológico original e atraente, e com o poder emissor derivado de esse critério se ter tornado nele uma franca paranóia de tipo interpretativo. O êxito europeu e ultra-europeu do Freud procede, a meu ver, em parte da originalidade do critério; em parte do que este tem da força e estreiteza da loucura (assim se formam as religiões e as seitas religiosas, compreendo nestas, porque o são, as de misticismo político, como o fascismo, o comunismo, e outras assim); mas principalmente de o critério assentar (salvo desvios em alguns sequazes) numa interpretação sexual. Isto dá azo a que se possam escrever, a título de obras de ciência (que por vezes, de facto, são), livros absolutamente obscenos, e que se possam «interpretar» (em geral sem razão nenhuma crítica) artistas e escritores passados e presentes num sentido degradante e Brasileira do Chiado assim ministrando masturbações psíquicas à vasta rede de onanismos de que parece formar-se a mentalidade civilizacional contemporânea. Compreenda-me v. bem: não quero com isto sequer supor que seja este último pormenor do Freudismo o que fez, a v., passes hipnóticos. Mas foi este pormenor que criou o vasto interesse no Freudismo em todo o mundo, e que, portanto, fez a publicidade do sistema.[…]
Ora, a meu ver (é sempre «a meu ver»), o Freudismo é um sistema imperfeito, estreito e utilíssimo. É imperfeito se julgamos que nos vai dar a chave, que nenhum sistema nos pode dar, da complexidade indefinida da alma humana. É estreito se julgamos, por ele, que tudo se reduz à sexualidade, pois nada se reduz a uma coisa só, nem sequer na vida intra-atómica. É utilíssimo porque chamou a atenção dos psicólogos para três elementos importantíssimos na vida da alma, e portanto na interpretação dela: 1º o subconsciente e a nossa consequente qualidade de animais irracionais; 2º a sexualidade, cuja importância havia sido, por diversos motivos, diminuída ou desconhecida anteriormente; 3° o que poderei chamar, em linguagem minha, a translação, ou seja a conversão de certos elementos psíquicos (não só sexuais) em outros, por estorvo ou desvio dos originais, e a possibilidade de se determinar a existência de certas qualidades ou defeitos por meio de efeitos aparentemente irrelacionados com elas ou eles.
Já antes de ter lido qualquer coisa de ou sobre Freud, já antes de ouvir falar nele, eu tinha pessoalmente chegado à conclusão marcada (1) e a alguns resultados dos que incluí sob a indicação (3). No capítulo (2) tinha feito menos observações, dado o pouco que sempre me interessou a sexualidade, própria ou alheia – a primeira pela pouca importância que sempre dei a mim mesmo, como ente físico e social, a segunda por um melindre (adentro da minha própria cabeça) de me intrometer, ainda que interpretativamente, na vida dos outros. Não tenho lido muito do Freud, nem sobre o sistema freudiano e seus derivados; mas o que tenho lido tem servido extraordinariamente – confesso – para afiar a faca psicológica e limpar ou substituir as lentes do microscópio crítico. Não precisei do Freud (nem ele, que eu saiba, me esclareceria esse pormenor) para saber distinguir a vaidade do orgulho, nos casos em que podem confundir-se, por meio de manifestações em que essas qualidades surgem indirectamente. Não precisei também do Freud para, no próprio campo da indicação (2), conhecer, pelo simples estilo literário, o pederasta e o onanista, e, adentro do onanismo, o onanista praticante e o onanista psíquico. Os três elementos constitutivos do estilo do pederasta, os três elementos constitutivos do estilo do onanista (e a divergência, em um deles, entre o praticante e o psíquico) – para nada disto precisei de Freud ou dos freudianos. Mas muitas outras coisas, neste capítulo e nos outros dois, de facto Freud e os seus me esclareceram: nunca me havia ocorrido, por exemplo, que o tabaco (acrescentarei «e o álcool») fosse uma translação do onanismo. Depois do que li neste sentido, num breve estudo de um psicanalista, verifiquei imediatamente que, dos cinco perfeitos exemplares do onanista que tenho conhecido, quatro não fumavam nem bebiam; e o que fumava abominava o vinho.
O assunto obrigou-me a cair no sexual, mas foi para exemplificar, como v. compreende, e para lhe dizer quanto, criticando embora e divergindo, reconheço o poder hipnótico do freudismo sobre toda a criatura inteligente, sobretudo se a sua inteligência tem a feição crítica. O que desejo agora acentuar e que me parece que esse sistema e os sistemas análogos ou derivados devem por nós ser empregados como estímulo da argúcia crítica, e não como dogmas científicos ou leis da natureza.[…]
[L]á para trás nesta carta, escrevi qualquer coisa sobre «afiar a faca psicológica» e «limpar ou substituir as lentes do microscópio crítico». Registo, com orgulho, que pratiquei, falando do Freud, uma imagem fálica e uma imagem iónica; assim sem dúvida ele o entenderia. O que concluiria não sei. Em qualquer caso, raios o partam! [2]
[1] Fernando Pessoa. Notas a uma biografia romanceada, Lisboa, Guimarães & C.a Editores, 1951.
[2] Cf. «Carta a Gaspar Simões de 11 de Dezembro de 1931», in Fernando Pessoa: Correspondência 1923-1935, (ed. por Manuela Parreira da Silva), Assírio & Alvim, Lisboa, 1999, pp. 248-258. Os extractos da carta foram editados pela Doutora Inês Lage Pinto Basto.